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Grupo de Gênero com homens em situação de violência doméstica

TRABALHANDO EM GRUPO COM HOMENS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

INTRODUÇÃO

A Central de Apoio e Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas à Prisão foi instalada na Comarca de São Gonçalo (CPMA-SG), através do Ato Executivo Conjunto nº 02/2002, da lavra do Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Marcus Faver, e do Corregedor geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Desembargador Paulo Gomes da Silva Filho, publicado no Diário Oficial de 30.01.2002.

Deste então a CPMA/SG, composta pelo cartório e a equipe técnica multidisciplinar, acompanha e fiscaliza o cumprimento das penas restritivas de direito previstas na legislação penal, aplicadas de forma substitutivas ou como condição de "SURSIS" e, ainda as medidas alternativas previstas na Lei dos Juizados Especiais. As penas e medidas alternativas acompanhadas são: prestação pecuniária (CB), prestação de serviço à comunidade (PSC), "SURSIS", Programa Justiça Restaurativa e acompanhamento psicológico.

A equipe técnica da CPMA/SG é composta por assistentes sociais e psicólogos que atendem às demandas processuais, fazem o monitoramento das instituições, acompanham a efetivação dos convênios, encaminham os beneficiários para o cumprimento das medidas e penas alternativas. Para tanto, além das entrevistas individuais e/ou em grupo em cada processo, desenvolvem grupos reflexivos, em separado, de homens e mulheres envolvidos em situação de violência doméstica, grupos reflexivos de pais envolvidos em situação de violência doméstica, grupo com as instituições conveniadas com a CPMA/SG, Programa Justiça Restaurativa e acompanhamento psicológico.

GRUPO REFLEXIVO DE GÊNERO

No contexto psicossocial apresenta-se o grupo reflexivo como proposta de reinserção social e também como uma nova forma de se lidar com o fenômeno da violência doméstica. Propondo resignificar a inserção do indivíduo no contexto pessoal, familiar e social através de uma abordagem metodológica na perspectiva educativa. O grupo tem como objetivos principais prevenir e estimular o rompimento do ciclo da violência , por meio da reconstrução de identidade e da relação de gênero baseada no processo de reflexão responsabilizante. Busca-se trabalhar de forma reflexiva outras vias de solução de conflitos que não passem pela violência.

A autora Bárbara Soares alerta para o fato de que:

"Só muito recentemente e ainda assim apenas em alguns países, a violência doméstica passou a ser reconhecida e considerada como um problema social que merece ser enfrentado e combatido. A visão tradicional da família como santuário, "célula-mãe da sociedade", "base do edifício social", acabou gerando uma barreira de proteção contra um fato um tanto desconcertante e, para muitos, ainda hoje inaceitável: o terror e a violência provocados por estranhos, bandidos, assaltantes, assassinos, quase sempre pobres, negros ou mulatos, segundo nosso imaginário amesquinhado por preconceitos e dominado pelo medo, pode não ser diferente daquele experimentado sobretudo por mulheres e crianças, dentro de suas próprias casas. Mais do que isso: é exatamente dentro de suas próprias casas que mulheres e crianças correm maior risco de serem agredidas, estrupradas, ameaçadas e mortas." (Soares, 1999, pág. 23)

A violência doméstica contra a mulher nos dias atuais tem ganhado notoriedade, principalmente depois do advento da Lei Maria da Penha e vem se destacando entre os temas sociais de grande importância. Atualmente, com a criminalização da violência que ocorre no âmbito doméstico, há uma resignificação do mundo privado e do mundo público, o que favorece a busca da publicização da violência doméstica. Segundo Valéria Pandjiarjian:

"Denominada violência de gênero, a violência física, sexual e psicológica contra a mulher é manifestação das relações de poder historicamente desiguais estabelecidas entre homens e mulheres. Tem, portanto, no componente cultural o seu grande sustentáculo e fator de perpetuação. O fenômeno da violência contra a mulher, em especial a que ocorre no âmbito doméstico e das relações intrafamiliares, acarreta sérias e graves conseqüências não só para o seu pleno e integral desenvolvimento pessoal, comprometendo o exercício de cidadania e dos direitos humanos, mas também para o desenvolvimento econômico e social do país. O custo dessa violência reflete-se em dados concretos "(Valéria Pandjiarjian, 2008,pág. 01).

No Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e Especial Criminal da Comarca de São Gonçalo, só nos três primeiros meses deste ano, foram distribuídos 628 processos de Violência Doméstica. Cabe registrar que São Gonçalo é uma cidade grande, com aproximadamente um milhão de habitantes , onde existe organização da Sociedade Civil, não só através do Movimento de Mulheres, mas por intermédio da intervenção do CEOM . Nosso trabalho surgiu fruto da discussão com estes movimentos da sociedade e da própria angústia dos profissionais em trabalhar este tema tão relevante em nossa sociedade.

O projeto Grupo Reflexivo surgiu em 1999. A princípio, houve uma parceria entre a ONG NOOS e o CEOM para montar o projeto piloto de atendimento em grupo a homens autores de violência doméstica contra mulheres. Após este passo, a equipe do CEOM elaborou a primeira metodologia, através de um grupo de trabalho formado por assistentes sociais e psicólogos, sob a supervisão da então coordenadora Marisa Gaspary.

Duas participantes deste grupo foram designadas para integrar a equipe da recém criada CPMA/SG, com o objetivo de enfrentar no Judiciário a questão da violência doméstica. Na ocasião não existia nenhum trabalho como este e foi um grande desafio abordar um tema tão polêmico. Então em 2002 iniciou-se, com metodologia própria, o desenvolvimento do grupo coordenado pelas duas assistentes sociais oriundas da equipe do CEOM. Com o passar dos anos, com aumento da equipe técnica e com acúmulo de experiência a referida metodologia foi sendo aprimorada, uma vez que está em contínua construção, atendendo ao objetivo de favorecer o rompimento do ciclo de violência.

As reuniões são realizadas semanalmente durante duas horas, com limite de até quinze participantes e coordenados por dois ou três facilitadores. O desenvolvimento da referida metodologia, durante a realização dos encontros, não segue um padrão rígido, cada dupla ou trio de profissionais elege as ferramentas técnicas que avalia mais adequadas para atingir o objetivo de cada reunião.

PROPOSTA DE TRABALHO

Utiliza-se como base a literatura de Paulo Freire, que associa temas e conceitos com a experiência cotidiana do universo da pessoa, favorecendo diálogos através de perguntas e dinâmicas, possibilitando a transformação de identidades e o cotidiano dos homens em situação de violência. Freire sugere que a pergunta seja um instrumento de diálogo e geradora de novas perguntas e reflexões.

Os grupos reflexivos sócio-educativos de gênero permitem que o homem seja trabalhado no grupo, que o grupo seja trabalhado pelo facilitador e o próprio grupo realize a ação reflexiva. O facilitador possui a função de propor atividades geradoras de reflexões, devolvendo sempre para o grupo as questões postas em discussão no sentido de estimular um processo de construção coletiva de consenso e de democratização das relações. Assim cada reunião cumpre um objetivo específico de acordo com o encadeamento de temas proposto.

A primeira reunião visa informar sobre o funcionamento do grupo (horário, dia, etc); estimular a adesão espontânea dos participantes; estabelecer os norteadores éticos e de convivência (tais como: sigilo, pontualidade, respeito com a história do outro e o compromisso com a não violência). Depois, na segunda reunião, busca-se trabalhar a expressão e a manifestação das emoções, reconhecendo as dificuldades que existem para expressar determinadas emoções devido à forma como fomos educados. Refletir sobre como somos socialmente levados a inibir ou a exagerar certas emoções e os custos dessa padronização social para nossas vidas. A terceira, a quarta e a quinta reuniões têm por finalidade fazer um resgate da história de vida de cada participante desde a infância até a idade atual; pontuar como a violência foi sendo inserida na vida de cada um; levantar reflexões sobre a responsabilização quanto aos fatos vivenciados e apontar formas de enfrentamento dos conflitos, sem a utilização da violência. Trabalhar as escolhas, atitudes tomadas e o que não foi possível ser vivido. Refletir de forma responsabilizante como cada decisão pode ou não mudar as nossas vidas.

Já a sexta e a sétima reuniões tratam das questões de gênero. Na sexta reunião, cujo tema é educação diferenciada, propõe-se uma reflexão sobre o conceito de gênero e discute-se a forma como o masculino e o feminino são construídos socialmente, buscando a diminuição da desigualdade entre os gêneros. Trabalhar que em nossa cultura, muitas vezes, existem expectativas em relação à forma como homens e mulheres devem ser e se comportar. Refletir que características biológicas, que diferenciam os homens das mulheres, não podem ser usadas como justificativas para promover o machismo ou reprimir os homens. Refletir com o grupo os papéis cristalizados e rígidos propagados pela nossa cultura, reproduzidos pela mídia, Igreja, escola, família e a comunidade que podem gerar conflitos em várias esferas, inclusive doméstica. E, na sétima reunião a proposta é tratar da paternidade e do cuidado com os filhos, onde se discutem alternativas não violentas para lidar com situações de conflito entre pais e filhos.

No conjunto composto pela oitava, nona, décima e décima primeira reuniões trata-se diretamente da questão da violência e formas de combatê-la. E na oitava reunião, cujo tema é raiva versus transformação, busca-se identificar situações onde se sente raiva e refletir sobre o que fazer para não perder o controle. A nona reunião tem por objetivo estudar a violência e trabalhar a capacidade de escuta; fomentar o tema violência nas suas múltiplas formas; levantar possibilidades de resolução dos conflitos sem o uso da violência e introduzir o tema violência doméstica. Durante a décima reunião trabalha-se o ciclo da violência, de forma lúdica e explicativa; apresentam-se as características de cada fase; levanta-se como cada um já vivenciou o ciclo da violência; fomentam-se formas de superação e rompimento do ciclo da violência. Fechando o raciocínio, na décima primeira reunião a proposta é identificar as formas de violência que praticamos ou que são praticadas contra nós.

A décima segunda reunião tem por objetivo apresentar o tema saúde de forma lúdica; estimular o uso da camisinha; fornecer possíveis informações sobre DST/AIDS. Falar sobre a importância de reconhecer os sintomas e procurar um médico urologista. Explicar que a AIDS não tem nenhum sintoma visível e que a única forma de saber se está contaminado pelo HIV é fazendo exame de sangue específico. Identificar as doenças sexualmente transmissíveis proporcionando uma reflexão sobre a importância de sua detecção e prevenção no contexto da sexualidade e saúde reprodutiva. Questionar os mitos e tabus em relação ao referido assunto.

Na décima terceira e na décima quarta reuniões o objetivo é preparar os participantes para o término do grupo. Assim, na décima terceira reunião encorajam-se os participantes do grupo para que revejam e avaliem os seus objetivos, reflitam sobre as metas e objetivos futuros, buscando uma nova proposta de vida, resgatando sonhos e desejos. E, na décima quarta reunião, considerada a última reunião, é quando se avalia a contribuição da participação no Grupo de Gênero para a qualidade dos relacionamentos e conseqüentemente para a qualidade de vida de seus membros.

As duas reuniões subseqüentes, após o término do bloco de quatorze reuniões semanais consecutivas, buscam dar um acompanhamento aos participantes do grupo. A décima quinta reunião é realizada um mês depois da décima quarta reunião e cada participante deve compartilhar com o grupo como está o seu momento de vida atual (relacionamentos, trabalho, família, etc...). E, a décima sexta reunião acontece dois meses depois da décima quarta reunião, nesta oportunidade pede-se que falem sobre o momento de vida atual e se conseguiram colocar em prática o "projeto de um novo homem" proposto no penúltimo encontro do grupo reflexivo de gênero para homens em situação de violência doméstica.

CONSIDERAÇÔES FINAIS

O grupo reflexivo de gênero para homens em situação de violência doméstica, desenvolvido desde 2002 pela equipe multiprofissional da CPMA/SG, aparece como uma proposta inovadora de trabalho junto a homens envolvidos em conflitos de gênero. OTribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, uma instituição de conceitos, historicamente, rígidos abriu possibilidade a novos olhares sobre a questão da violência doméstica e na perspectiva de propor a reflexão aos homens envolvidos nesse tipo de conflito. Além de concretizar o desejo de trabalhar tais questões de forma menos tradicional e mais eficaz do que normalmente a Justiça impõe. Uma vez que leva os homens em questão a pensar, refletir, rever atitudes consigo mesmo e com a vida. O que tem trazido excelentes resultados já que não temos notícias de reincidência no delito, até o momento, e as avaliações dos participantes têm sido muito positivas.

Referências

1 Autoras:

Ana Paula Alves Pacheco; CRESS 11606/07; e-mail: anapap@tjrj.jus.br; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Elaine Coutinho Fernandes, CRESS 13475/07; e-mail: aselainecoutinho@terra.com.br; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Simone Mendonça Cosendey; CRESS 11605/07; e-mail: smctjrj@ig.com.br; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Anna Claudia Campos de Almeida; CRP 05/17541; e-mail: annaca@tjrj.jus.br; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Lenise Maria dos Santos Duarte Lacerda, CRP 05/10938; e-mail: lmsdlacerda@uol.com.br; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

2 Etapas do ciclo da violência doméstica, segundo Bárbara Soares: construção da tensão, explosão da violência e falsa "lua de mel".

3 Em 2006, segundo informações do IBGE.
4 Centro Especial de Orientação à Mulher Zuzu Angel.

BIBLIOGRAFIA

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