Iniciativas de combate à violência doméstica são ampliadas na pandemia
A pandemia não arrefeceu o trabalho de combate à violência doméstica desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ao contrário. O entendimento de que a quarentena poderia deixar as vítimas mais expostas a esse tipo de crime suscitou medidas para informar e criar novos canais de denúncia a fim de agilizar o atendimento. Para a juíza Adriana Ramos de Mello, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, os números, ainda no início das medidas de isolamento social, já apontavam para um panorama preocupante.
- Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados ainda em maio já mostravam que havia um aumento do feminicídio em torno de 22,2%, com 143 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres em 12 estados da Federação. Por outro lado, havia uma redução de 25% dos crimes nas delegacias, como registros de estupro de vulnerável. Isso mostrava que se dirigir a uma delegacia presencialmente, que é a primeira porta de entrada para a Justiça, para relatar uma violência que a mulher já sofria passou a ser acompanhada do medo não só de morrer, ou de sofrer algum tipo de represália, mas também de contágio pela Covid-19. O confinamento, com a família toda em casa, com o agressor trabalhando remotamente, os filhos sem aula, criou um ambiente muito propício e fez com que muitas mulheres sofressem caladas – avalia a magistrada.
As medidas adotadas ao longo do ano se mostraram essenciais diante dos dados que indicaram a necessidade de maior prevenção e proteção. Para se ter uma ideia, basta comparar, por exemplo, estatísticas de abril e julho. Em abril, o Observatório da Violência Doméstica do TJRJ registrou 2.731 Casos Novos de Conhecimento em Violência Doméstica Contra a Mulher (CnCVD). Em julho, esse número já tinha aumentado para 6.175 ocorrências.
Ainda em abril, as medidas protetivas deferidas somavam 1.865, sendo que em julho, foram 2.396. Os números relativos aos casos de lesão corporal leve decorrentes de violência doméstica também registraram alta – foram 137 em abril e 660 em julho. Para a juíza Katerine Jatahy, do VI Juizado de Violência Doméstica da Capital e integrante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica (Coem) do TJRJ, era necessário encarar um enorme desafio:
- Nesse contexto nunca imaginado, a rede de enfrentamento da violência contra a mulher, incluindo sistema de Justiça, órgãos da Segurança Pública, da Saúde e da Assistência Social, teve que se reinventar. A Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça do Rio, desde o início da pandemia, passou a fazer reuniões semanais pelas plataformas virtuais com os integrantes dessa rede visando promover, operacionalizar, divulgar, fortalecer e implementar ações para diminuir os obstáculos adicionais que as mulheres enfrentavam para fugir de situações de risco em razão das restrições à locomoção durante o isolamento - conta a juíza.
Ainda no início das medidas de distanciamento social adotadas pelo TJRJ através do Regime Diferenciado de Atendimento de Urgência (RDAU), a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Coem) realizou reuniões internas e com a rede de enfrentamento à violência contra a mulher com o objetivo de manter o constante engajamento das instituições e garantir o acesso à Justiça e a proteção integral às mulheres vítimas de violência doméstica.
Uma das primeiras ações foi atender vítimas nos juizados de Violência Doméstica e Familiar da capital em regime especial de rodízio, com casos julgados por magistrados dedicados ao tema – com ênfase no trabalho com estatísticas do Observatório Judicial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que reúne as informações da rede de enfrentamento à violência contra a mulher. Além disso, foi solicitado à Polícia Civil fluminense que os registros de ocorrência para pedidos de medidas protetivas pudessem ser feitos de modo on-line – diante de eventual impossibilidade de comparecimento da vítima à delegacia -, ou seja: a disponibilização de um canal de atendimento adequado para que, consequentemente, ocorresse a prestação jurisdicional.
Cartilha de orientação
A Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) criou a cartilha “Covid-19: confinamento sem violência”, através de iniciativa do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia da Emerj (Nupegre). A publicação traz orientações da Organização das Nações Unidas (ONU) e oferece as principais informações para que a vítima possa se proteger e buscar ajuda em casos de violência de gênero. Em 24 páginas, foi possível destacar os tipos de violência doméstica (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) e a função dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A solidariedade também se fez presente. Um dos exemplos aconteceu na Comarca de Três Rios, quando seis integrantes do programa Flor de Lótus - uma parceria do Juizado de Violência Doméstica e Familiar com o 38º Batalhão de Polícia Militar que prevê práticas destinadas ao combate da violência doméstica e possibilita atendimento à vítima e garantia de proteção - e da Patrulha Maria da Penha se uniram para ajudar moradoras de baixa renda através da distribuição de cestas básicas.
Capacitação on-line para Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica
Foi necessário ainda capacitar quem atuava na ponta do atendimento e, para isso, o painel on-line “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica: Resistências e Reexistências na Proteção da Mulher” colocou 350 policiais civis em contato com os magistrados que lidam com a questão diariamente. Já naquele momento, havia uma redução de 48,5% do número de registros enquadrados na Lei Maria da Penha no estado. A iniciativa visava reforçar a campanha lançada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) em farmácias e drogarias de todo o país para que estes estabelecimentos se transformassem em mais um canal para as mulheres denunciarem os abusos e maus-tratos sofridos. Os trabalhadores foram capacitados para que soubessem como agir caso fossem abordados por uma mulher com o símbolo da campanha na mão (um X vermelho), com acionamento da polícia ou, caso não fosse possível, com o preenchimento de um formulário com os dados da vítima para posterior envio às autoridades – sem a necessidade do atendente ser configurado como uma testemunha.
Inauguração de novas Salas Lilás e Violeta
Criada para prestar atendimento especializado às vítimas de violência física e sexual, incluindo crianças (vítima de abusos sexuais), adolescentes e idosas, a Sala Lilás teve o atendimento ampliado durante a pandemia. A terceira e quarta unidades foram inauguradas junto ao Instituto Médico-Legal de Petrópolis e de Niterói. Com equipamentos para exames periciais e com profissionais multidisciplinares como policiais, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiras, a integração dos serviços tem o objetivo de ajudar as vítimas a se sentirem mais à vontade para relatar a violência sofrida em um ambiente mais acolhedor e aconchegante. Atualmente, o projeto funciona nos Institutos Médico-Legal do Centro do Rio e de Campo Grande, na Zona Oeste, e surgiu através de uma parceria do TJRJ com a Polícia Civil, as secretarias Estadual e Municipal de Saúde, além da Secretaria Especial de Política para as Mulheres e do Rio Solidário.
Já a nova unidade da Sala Violeta passou a atender vítimas de violência doméstica em São Gonçalo no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Fórum da comarca. Vencedor do Prêmio Innovare de 2014, o projeto consiste em um núcleo de atendimento às vítimas de violência doméstica, numa ação que conta com a participação de defensores públicos, promotores e assistentes sociais dentro da comarca. No mesmo dia sai a medida protetiva e o agressor não pode mais ficar no mesmo ambiente da mulher. Depois de registrar ocorrência na delegacia e solicitar as medidas protetivas de urgência, a vítima é encaminhada para o espaço do Projeto Violeta, onde é ouvida e orientada por uma equipe multidisciplinar do Juizado e sai com uma decisão judicial em mãos.
- No período foi realizada a revisão da Consolidação Normativa da Corregedoria Geral de Justiça (CGJ) a qual expandiu o protocolo Violeta-Laranja para todo o estado e tratou da uniformização das rotinas aplicadas nos Juizados de Violência contra a Mulher. Foram realizadas capacitações em violência doméstica para Magistrados pela Emerj, e para serventuários do cartório e equipes técnicas de todo o estado com atuação em Varas com competência para crimes de violência contra a mulher pela Escola de Administração Judiciária (ESAJ), inclusive com convocação da CGJ – observa a juíza Katerine Jatahy.
Criado em agosto de 2018, o Protocolo Violeta-Laranja é um instrumento de atuação e colaboração entre os I a IV Tribunais do Júri, o I Juizado de Violência Doméstica e o Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência de Gênero da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (Nudem). O objetivo é reduzir o lapso temporal entre o registro do fato e a decisão judicial, além de garantir a segurança e a proteção máxima das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
Patrulha Maria da Penha na campanha “Confinamento sem Violência”
Locais públicos e de grande circulação de pessoas, como farmácias, supermercados e igrejas. Esses foram os alvos para a divulgação de cartazes da campanha “Covid-19 – Confinamento sem Violência”, elaborada pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (COEM) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e pelo Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (NUPEGRE).
A publicação trouxe as principais informações para que a mulher possa se proteger e buscar ajuda em casos de violência de gênero, além de fazer conhecer a função dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, traçando um plano de segurança para a vítima utilizar em situações de emergência. O objetivo era esclarecer e estimular as vítimas de maus-tratos para não se intimidarem durante o período de distanciamento social e denunciarem seus agressores.
A iniciativa teve o apoio da Patrulha Maria da Penha, uma parceria entre o TJRJ e a Polícia Militar composta por um grupo motorizado especial que atende casos de violência contra a mulher em todo o Estado do Rio, fiscalizando o cumprimento de medidas protetivas.
Retomada da Escola de Homens
Previsto na Lei Maria da Penha, o grupo reflexivo Escola de Homens reformulou as atividades e foi retomado para atender a demanda que aumentou durante a pandemia. O objetivo é coibir o número de reincidência e estimular o rompimento do comportamento agressivo com o auxílio de uma equipe técnica composta por psicólogos e assistentes sociais: Desde 2009, quando foi criada, mais de 1.700 alunos foram acolhidos pela escola.
Os autores da violência doméstica são encaminhados por determinação judicial, passando por uma entrevista preliminar para traçar o perfil socioeconômico, as demandas e as necessidades para o encaminhamento final.
Com metodologia baseada em reflexões sobre assuntos que funcionam como gatilhos para a violência, são abordados temas como ausência de empatia e falta de diálogo, além de sentimentos como a raiva - com o objetivo de desnaturalizar a violência doméstica e desconstruir a masculinidade tóxica. Há ainda espaço para discussões sobre conceito de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, homofobia e a violência de gênero.
Aplicativo Maria da Penha para acelerar medidas protetivas
E uma parceria entre o TJRJ e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) fez surgir uma inovação para o mundo jurídico - o link Maria da Penha Virtual - https://maria-penha-virtual.tjrj.jus.br. Ele permite que a mulher solicite à Justiça uma medida protetiva de urgência sem que precise sair de casa. Para tanto, basta clicar no link usando um computador ou mesmo um celular. O dispositivo não precisa ser baixado e não ocupa espaço na memória do aparelho. O projeto Maria da Penha Virtual foi desenvolvido por um grupo de estudantes e pesquisadores do Centro de Estudos de Direito e Tecnologia da UFRJ. O TJRJ participa da iniciativa por meio da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e da Coordenadoria Estadual da Mulher Vítima de Violência Doméstica (Coem).
SV/FS