Os desafios da adoção inclusiva: o amor que acolhe além das estatísticas
Sheila, Érica e Alessandra são exemplos de que o amor ultrapassa diagnósticos e estatísticas
Em um cenário em que muitas crianças com deficiência ou condições específicas enfrentam longas esperas por uma família, histórias de adoção inclusiva como as de Érica, Sheila e Alessandra mostram que o amor pode ultrapassar diagnósticos e estatísticas. São mães que decidiram abrir o coração para filhos com necessidades especiais e construíram, a partir disso, lares repletos de afeto, acolhimento e superação.
Érica: entre UTI e adoção, a força da maternidade
Érica Salgado é mãe de três crianças adotadas. Os gêmeos Natan e Davi, com 8 anos, chegaram ainda com dois meses de vida, em 2017. Dois anos depois, foi a vez da pequena Beatriz, hoje com 6 anos, adotada com apenas cinco dias de nascida.
Natan e Davi nasceram prematuros extremos, com 27 semanas de gestação. As complicações foram graves: Natan passou 1 ano, 1 mês e 15 dias internado na UTI; Davi, 5 meses e 14 dias. Ambos foram diagnosticados com paralisia cerebral.
“A situação era bem mais delicada do que parecia no papel. O Natan foi desenganado pela Medicina. Ele foi ressuscitado duas vezes, uma na sala de parto e outra na UTI, antes mesmo de sermos chamados para conhecê-los”, lembra Érica. “Seis dias após o nascimento, o respirador do Natan explodiu e pegou fogo na UTI. Ele estava entubado e pesava pouco mais de 800 gramas.”
André Luiz e Érica com os filhos Natan, Davi e Beatriz
Hoje, Natan é cadeirante, consequência de uma infecção hospitalar, mas a adaptação da família foi natural, como conta Érica. “Eles chegaram pequenos, frágeis, mas com uma vontade de viver que nos contagiou. Não tivemos dúvidas”.
Beatriz também veio por adoção ainda bebê, e, apesar dos desafios, Érica é firme. “A maternidade é feita de entrega, não importa se o filho nasce ou chega por adoção”.
Sheila: do diagnóstico ao afeto incondicional
Sheila Novaes e o marido conheceram a filha, Maria Eduarda, por meio de uma busca ativa — processo realizado quando a vara da infância procura uma família para uma criança que enfrenta algum tipo de vulnerabilidade ou comorbidade.
Maria Eduarda, a Duda, com os pais Sheila e Lawrence
Duda, como é chamada, chegou ao lar com seis meses, pesando apenas 2,6 kg. O diagnóstico viria dois meses depois: Síndrome Alcoólica Fetal (SAF), uma condição provocada pela ingestão de álcool durante a gravidez, que poderia ter sido evitada com abstinência completa da mãe biológica. “Ela nasceu com 600 gramas, fruto de uma gestação muito difícil, e, apesar da idade, tinha o desenvolvimento de um recém-nascido”, relata Sheila. Com a SAF, vieram outras comorbidades: microcefalia, miocardiopatia, baixo peso, canal auditivo estreito e até uma má formação medular.
Hoje, aos 10 anos, Duda é uma menina alegre e participativa. “Ela lê, escreve com destreza, acompanha o conteúdo do 4º ano com adaptações, tem amigos e interage super bem. É sensível, inteligente, e nos ensina todos os dias”, afirma Sheila, com orgulho.
Alessandra: adoção na adolescência e o acolhimento como escolha de vida
No Sul, em São Leopoldo (RS), a professora Alessandra Jardim também tem duas filhas adotivas. A primeira, Nina, chegou com apenas 23 dias, em 2011. Já Marianna foi adotada aos 11 anos, em 2017, por meio de busca ativa — e também com deficiência.
“Desde adolescente, eu sabia que queria ser mãe por adoção, mesmo sem saber se poderia engravidar. Acabei gestando dois filhos, que são mais velhos que as meninas. Mas a adoção sempre esteve comigo”, afirma Alessandra.
Marianna com a sua mãe Alessandra
A chegada de Marianna foi marcada por afeto e firmeza. “Ela tinha 11 anos e já vinha com sua própria história. A adolescência exige diálogo, respeito e posicionamento. É como qualquer maternidade: dias tranquilos, outros desafiadores. Mas o amor é o mesmo”.
Adoção inclusiva e busca ativa: caminhos para o amor que acolhe além dos limites
No Brasil, a adoção inclusiva — aquela que acolhe crianças com deficiência, doenças crônicas, idade mais avançada ou pertencentes a grupos de irmãos — vem ganhando força. Ainda que represente uma parcela menor entre os processos, esse movimento desafia preconceitos e mostra que o amor pode ir muito além das condições de saúde ou das estatísticas.
De acordo com dados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), 356 crianças e adolescentes foram adotados no estado, em 2024. Entre janeiro e outubro de 2025, foram concluídas 158 adoções. Parte dessas histórias nasce a partir de um instrumento essencial: a busca ativa.
A juíza titular da 3ª Vara de Infância e Juventude Protetiva do Rio de Janeiro, Mônica Labuto Fragoso Machado, explica que o sistema permite ampliar as possibilidades de encontro entre pretendentes e crianças. “A busca ativa é uma ferramenta que democratiza a adoção. Ela possibilita que pessoas habilitadas possam conhecer crianças fora do perfil inicialmente escolhido, em qualquer estado do país”, detalha. Segundo a magistrada, o processo é feito de forma segura e restrita, com acesso exclusivo para quem já está habilitado. “É um meio de dar visibilidade a quem, muitas vezes, ficaria esquecido nas estatísticas”.
Nos abrigos sob sua jurisdição, a juíza acompanha de perto o cotidiano de crianças com diferentes graus de deficiência. “Temos duas unidades em Jacarepaguá que acolhem casos mais graves — crianças com gastrostomia, traqueostomia e paralisia cerebral severa. Nesses espaços, há médicos e enfermeiros permanentes, garantindo o cuidado contínuo”, explica. Outras, com condições menos complexas, são incluídas em abrigos comuns, dentro da política de convivência inclusiva.
A magistrada destaca que o conceito de inclusão nos abrigos evoluiu muito nas últimas décadas. “Quando cheguei à vara, em 2007, ainda existiam abrigos exclusivos para crianças com HIV. Eu acabei com isso, porque isso não é inclusão. Hoje, essas crianças convivem normalmente com outras, sem qualquer distinção. É um ganho civilizatório importante”, afirma.
Os casos de adoção de crianças com necessidades especiais, embora ainda desafiadores, têm crescido. Segundo Mônica, a mudança de mentalidade é visível. “Nós avançamos em todos os perfis. O maior avanço foi na adoção interracial, mas também tivemos melhora nas adoções de crianças com deficiência e no aumento da faixa etária. Há 20 anos, ninguém queria adotar acima dos 5 anos; hoje conseguimos adoções até os 10, 11 anos com certa frequência”, observa.
Parte desse avanço se deve também à transparência e à conscientização promovidas pelos grupos de apoio à adoção. “É fundamental que os pretendentes conheçam a realidade dos abrigos. Muitos ainda acreditam que são todos cheios de bebês saudáveis, o que está longe da verdade. A visitação é parte essencial do processo”, enfatiza a juíza. Para ela, compreender a diversidade de perfis ajuda os adotantes a encontrar o que realmente combina com sua realidade de vida e disponibilidade de cuidado.
Mesmo com os avanços, a adoção inclusiva ainda enfrenta barreiras estruturais. “Há famílias com desejo de adotar, mas que não têm recursos suficientes para custear terapias, cadeiras de rodas ou acompanhamento médico. O Sistema Único de Saúde (SUS) não consegue atender com a rapidez necessária, e isso pesa na decisão. Precisamos fortalecer políticas públicas que deem suporte a essas famílias”, pondera.
Como Adotar?
O processo de adoção é gratuito e deve ser iniciado na Vara de Infância e Juventude mais próxima de sua residência.
A idade mínima para se habilitar à adoção é 18 anos, independentemente do estado civil, desde que seja respeitada a diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança a ser adotada.
Dirija-se à vara com competência na matéria da Infância e da Juventude mais próxima da sua residência para se informar sobre os procedimentos a serem seguidos.
Clique neste link e consulte os endereços destas varas.
SV/ SF