Vara de Registros Públicos atende casos de mortes presumidas por desaparecimento
Faltavam poucos dias para o Natal de 2013 quando uma dona de casa se viu, repentinamente, sozinha com três filhos pequenos para criar: o marido tinha sido assassinado com tiros de fuzil. “Foi triste, doloroso, traumático, tudo ao mesmo tempo”, lembra ela.
Não bastassem a dor da perda e a angústia de não saber como seria a vida dali pra frente, ela se viu diante de um outro drama: o autor dos disparos ordenou que o corpo da vítima fosse esquartejado e carbonizado para nunca ser encontrado. E foi o que aconteceu: durante 11 anos, sem cadáver, não havia registro civil de óbito. O status de casada virou uma viuvez não-oficial, invisível para o Estado. “É muito ruim não encerrar o ciclo, não ter o direito de enterrar, de sentir que aquilo ali acabou, tá sempre em aberto na minha vida. Os outros sempre me perguntam ‘você é casada?’ e eu falo, ‘me responde você se eu sou casada. Porque, no meio desse mundo, eu sou o quê? Casada? Viúva? Eu quero dizer que sou viúva”, desabafou.
O marido dela foi mais uma vítima da violência praticada por milicianos que controlam parte dos territórios cariocas. Ele negociava o loteamento de um terreno quando soube que precisava pagar uma taxa para cada pedaço de terra vendido. O dinheiro era entregue para o ex-policial militar Toni Ângelo Souza de Aguiar, chefe da “Liga da Justiça”. Quando Toni, então considerado o maior miliciano do Rio, foi preso, a extorsão ganhou um novo destino: o também ex-PM Marcos José de Lima Gomes, o “Gão”.
Morto em emboscada
O que a vítima não esperava era ser morto em uma emboscada planejada por “Gão” em busca da posse da propriedade. Uma testemunha, que viu toda a ação, contou que pelo menos 18 comparsas participaram do crime, ajudando a sumir com o corpo, jogado no porta-malas do próprio carro – que também desapareceu, explicou.
A história teve um capítulo final no dia 8 de setembro deste ano, quando a família recebeu um registro civil de óbito. O juiz titular da Vara de Registros Públicos, Alessandro Oliveira Félix, explica que a declaração de morte presumida, nesse caso, foi facilitada pelo fato de haver não só testemunhas do assassinato, mas, também, uma condenação nos tribunais a partir das investigações da Polícia Civil – “Gão” foi preso alguns meses depois do crime e cumpre pena de 19 anos em regime fechado.
O juiz titular da Vara de Registros Públicos,Alessandro Oliveira Félix, destacou a importância da resolução do CNJ que determina que os familiares de pessoas desaparecidas devem ser tratados com respeito, acolhimento e escuta ativa
Novas diretrizes
Mesmo assim, ele lembra que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definiu diretrizes e procedimentos para garantir apoio às famílias de pessoas desaparecidas com o objetivo de que elas sejam reconhecidas como vítimas indiretas e tornar o processo judicial mais ágil.
“A situação do Rio de Janeiro é tão grave que o modelo de gestão implementado aqui para esse problema foi base para o Sistema Nacional de Localização de Desaparecidos do Ministério Público brasileiro. Essa resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai ainda de encontro à questão do desaparecimento forçado, uma grave violação dos Direitos Humanos, praticado por agentes do Estado ou por omissão dele, que é o caso das milícias e do tráfico de drogas”, esclareceu o magistrado.
A resolução determina que os familiares de pessoas desaparecidas tenham participação efetiva nos processos judiciais, acesso facilitado às informações, com atendimento especializado. Os casos de morte presumida devem ter audiências em até 30 dias.
Sobre o drama vivido pela família que teve a trajetória interrompida pela violência, o magistrado não tem dúvidas dos transtornos que mãe e três crianças pequenas passaram ao longo dos anos.
“Ela não abriu um pedido de pensão, ela não resolveu os bens que ele deixou, ela não pegou o dinheiro que está no banco que ele deixou, ela teve de dar conta desses três filhos esses 11 anos sozinha. É muito ruim”, disse o magistrado.
O filho mais velho do casal tinha 12 anos quando o crime aconteceu. “Crescer sem pai até hoje... Minha irmã mais nova não se lembra dele, não sabe nem como era o rosto do pai. A gente tenta contar algumas histórias pra que ela tenha uma noção de como nosso pai era", lamenta ele.
A mãe do rapaz agora quer refazer a vida. Ao lado dos filhos, ela faz planos e já decidiu: se puder, volta para a terra natal.
“Meu pais vieram para o Rio a trabalho e, quando eu casei, eles voltaram para Tubarão, em Santa Catarina. Quando mataram meu marido, fiquei sozinha, mas não quis ir embora porque falei ‘não vou desistir pelos meus filhos’. Mas, agora, eu tenho muita vontade de voltar”, disse a viúva.
A juíza Raquel Chrispino, da Vara de Registros Públicos do TJRJ, conduziu a audiência e concedeu a certidão de óbito aos familiares da vítima
No dia 26 de agosto, o Conselho Nacional de Justiça definiu diretrizes e procedimentos para garantir atenção e apoio às famílias e contou com a colaboração do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) por meio da contribuição da juíza da Vara de Registros Públicos Raquel Chrispino como convidada especialista no tema, no grupo de trabalho do Programa Justiça Plural, que propôs a resolução CNJ 325, de 29 de junho de 2020
SV/SF
Foto: Brunno Dantas/ TJRJ