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Entrevistas dos ministros Ribeiro Dantas e Rogerio Schietti Cruz sobre o Anteprojeto da nova Lei de Drogas
Notícia publicada por DECCO-SEDIF em 08/03/2019 17:48

Entregue à Câmara dos Deputados em 7 de fevereiro, a proposta de reforma da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) reforça os mecanismos de punição contra o narcotráfico ao criar tipos penais mais específicos, com penas que variam de acordo com a gravidade da conduta. O anteprojeto prevê, ainda, a descriminalização do uso pessoal de drogas no limite de dez doses por usuário e aposta na política de redução de danos e de prevenção ao uso.

Leia abaixo as entrevistas dos ministros do STJ Ribeiro Dantas e Rogerio Schietti Cruz,  respectivamente, presidente e vice-presidente da comissão criada pela Câmara dos Deputados  para propor alterações na lei.

 

Entrevista com o ministro Ribeiro Dantas

O anteprojeto muda a redação do artigo 33, que define o crime de tráfico. Quais as principais alterações nesse ponto?

Ribeiro Dantas – A legislação atual estabelece um crime único para o tráfico de drogas. No anteprojeto, nós substituímos os 18 verbos desse artigo por 15 tipos criminais distintos. Criamos a figura do tráfico internacional, que é punido mais severamente do que na legislação atual. Outro crime com a pena muito alta é o financiamento do tráfico de drogas. É a pena mais alta de todas, de dez a 20 anos, e se o financiamento for para o tráfico internacional pode aumentar em mais um terço.

 

E outras condutas tiveram a pena reduzida, de acordo com a gravidade?

Ribeiro Dantas – Sim. Remeter, transportar, por exemplo, são condutas mais graves do que armazenar, que recebe uma pena menor. Outro exemplo de abrandamento da pena seria o transporte por meio de terceiros, o caso da “mula” do tráfico. O juiz poderá ainda deixar de aplicar a pena quando ficar comprovado que o agente sofreu grave coação.

Como foi tratada a questão das mulheres que tentam levar drogas para dentro de presídios?

Ribeiro Dantas – É outro caso destacado de coação, por isso a pena fica mais branda na proposta de atualização da lei. Muitas vezes, se não levarem as drogas, elas morrem. Nessas situações, elas estão desesperadas. Atualmente, a mulher é presa e alguns juízes dizem que a conduta é mais grave que o tráfico standard porque é o transporte de drogas para estabelecimento penitenciário. Ela fica presa e quem toma conta das crianças acaba sendo o tráfico. Por outro lado, no caso de tráfico dentro da prisão, aumentamos a pena pela gravidade da conduta. Ainda sobre a coação das mulheres, há uma preocupação nesse sentido. Os crimes relacionados a droga representam mais da metade do encarceramento das mulheres. O que se observa é que elas são quase sempre usadas pelo tráfico em situações de pressão ou coação.

 

A exposição de motivos do anteprojeto menciona a necessidade de critérios mais objetivos para a aplicação da lei. Poderia dar um exemplo da nova redação nesse sentido?

Ribeiro Dantas – As causas de aumento ou diminuição de pena são uma novidade porque trabalhamos com a quantidade da droga. Dependendo da quantidade, a pena pode ser aumentada de um sexto a um terço. E a pena pode ser aumentada em dois terços se o crime for praticado com violência, grave ameaça, se atingir adolescente, criança, qualquer pessoa que tenha capacidade suprimida. Outra situação é o tráfico com a participação de três ou mais pessoas. Temos o conceito de organização criminosa caracterizado, neste caso, com a quantidade superior a um milhão de doses da droga.

Em outros casos, a objetividade também pode significar a redução da pena?

Ribeiro Dantas – Sim, há casos de diminuição, como a quantidade entre cem e mil doses, ou entre dez e cem doses, por exemplo. A colaboração do réu para solucionar o caso, a questão da coação de mulheres, todos esses são fatores de diminuição da pena no texto proposto.

 

Diminuir o caráter de subjetividade da lei atual é um princípio norteador do texto apresentado?

Ribeiro Dantas – Esse foi o pensamento da comissão. Queremos diminuir a subjetividade da Lei de Drogas porque, atualmente, condutas idênticas, dependendo do juiz, podem ter penas muito diferentes.

 

De que forma a experiência como julgador auxiliou na elaboração do anteprojeto?

Ribeiro Dantas – Foi muito importante ter essa experiência e também poder contar com a experiência dos demais membros da comissão, já que ela contou com desembargadores, membros do Ministério Público, juízes, professores e outros especialistas. A comissão teve uma composição multifacetada e acesso a uma grande variedade de informações. Além disso, realizamos várias audiências. É importante registrar que o texto apresentado é apenas a primeira palavra. Cabe agora ao Congresso dar andamento à proposta. Nós demos uma contribuição em um tema complicado. Nas questões-chave, se você ouvir cem pessoas, é possível ter cem opiniões diferentes.

 

Houve uma mudança de foco na repressão, com ênfase no combate ao grande traficante. O que se pode esperar dessa política?

Ribeiro Dantas – É esse trabalho que efetivamente resolve. É o combate ao grande tráfico que pode “quebrar as pernas” do crime organizado, principalmente cortando as linhas de financiamento. Se ficarmos centrando a repressão no pequeno flagrante de esquina, pegamos o peixe pequeno e mandamos soldados para as facções do crime organizado.

 

Entrevista com o ministro Rogério Schietti Cruz

Uma das preocupações do anteprojeto é estabelecer diferença entre dependência e uso problemático de drogas. Essa distinção é nova?

Rogerio Schietti – Todo nosso trabalho é fruto de leitura e consulta a pessoas que nos trouxeram o que há de mais atual no mundo sobre o tema. A questão das drogas ilícitas envolve uma miríade de classificações. Existe o usuário eventual, esporádico, que não necessariamente se torna dependente. Há os dependentes e há aqueles que, mesmo não sendo dependentes, acabam tendo problemas pessoais por causa do uso frequente: perdem o emprego, têm conflitos familiares, enfim, geram situações que lhes trazem problemas e por isso são definidos como usuários problemáticos. Tentamos dar respostas correspondentes a cada uma das situações, mantendo ao mesmo tempo um tratamento rigoroso ao tráfico.

 

Foi nesse contexto que surgiu a proposta de descriminalização?

Rogerio Schietti – Sim, para a pessoa que faça uso até um limite de dez doses, propomos sua retirada do sistema criminal, pois é um problema individual e, eventualmente, de saúde pública. Estamos respeitando a autodeterminação do indivíduo. Se o uso causar problemas, pode haver a intervenção do Estado, mas o indivíduo somente será alcançado pelas garras da Justiça quando se envolver com o tráfico de drogas. A tendência mundial é essa. Se nós estivermos errados, o mundo todo também estará.

 

Quais foram os modelos internacionais observados pela comissão para a definição da proposta da descriminalização?

Rogerio Schietti – Foram analisados vários modelos no mundo todo, desde os que não punem na esfera criminal e usam apenas sanções cíveis, como a multa, até os modelos mais draconianos inspirados na iniciativa de “guerra às drogas”, em que uma dose para consumo próprio pode gerar a aplicação da pena de morte. Há modelos que descriminalizam e legalizam, como o do Uruguai, que criou uma autarquia para regular esse novo mercado.

 

Algum desses modelos internacionais foi mais inspirador?

Rogério Schietti – Todos os estudiosos do assunto e a literatura especializada colocam Portugal como o modelo que mais deu certo em relação a uma nova política relacionada a drogas ilícitas. Reconhecemos que o Brasil não tem condições de dar o mesmo passo, por isso demos um passo tímido com a descriminalização do uso limitado. É o que achamos possível para nossa realidade. Há quem defenda a legalização do comércio, mas há uma deficiência do Estado em fornecer e controlar serviços, então não poderíamos deixar o Estado administrar isso. Simplesmente não vamos mais criminalizar a conduta das pessoas que fazem uso dessas substâncias sem consequências maiores a terceiros. A proposta é não mais punir criminalmente usuários quando flagrados na posse de até dez doses.

 

Qual o parâmetro adotado para a definição desse limite de dez doses?

Rogerio Schietti – É muito difícil estabelecer o parâmetro. Em alguns países o limite é cem gramas de cannabis; em outros, 40. Outros fixam limites por dias de consumo. É importante destacar que estabelecemos uma presunção que pode ser desconsiderada pela realidade dos fatos. O juiz pode avaliar se é realmente caso de usuário ou se é um traficante com pequena quantidade. Futuramente, esse quantitativo deverá ser definido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Como essa regulamentação pode demorar, o anteprojeto estabeleceu um limite provisório.

 

No Brasil, a questão das drogas leva ao encarceramento em massa. Isso também pesou na hora de formular as propostas?

Rogerio Schietti – Também. Nós observamos que na vigência da lei atual o grau de encarceramento em geral aumentou muito, e os crimes relacionados ao tráfico tiveram um aumento muito maior. Atualmente, cerca de 30% dos homens condenados cumprem pena por crimes ligados ao tráfico, e entre as mulheres esse percentual chega a 70%. Pior que a superlotação do sistema penitenciário são as condições de cumprimento de pena. As facções se alimentam da mão de obra que entra nos presídios por crimes pequenos. Esses pequenos flagrantes não afetam o comércio de drogas, pois quem é preso logo é substituído na função. São pessoas que poderiam ter outra resposta punitiva do Estado e, no anteprojeto, procuramos tratar cada situação de tráfico com a respectiva gravidade, dosando as penas de modo proporcional.

 

Há também uma preocupação com a política de redução de danos. De que forma esse conceito está presente no anteprojeto?

Rogerio Schietti – No texto apresentado, há uma afirmação da política de redução de danos para as hipóteses de intervenção social do Estado para que, na medida do possível, uma eventual dependência seja vencida ou, ao menos, controlada, conforme cada caso.

 

É possível prever os efeitos que a descriminalização pode ter sobre o consumo de drogas e a criminalidade em geral?

Rogerio Schietti – Este é um tema sobre o qual estamos sem condições de fazer prognósticos seguros. São vários fatores que levam uma sociedade a conviver com drogas e crimes. É possível que haja no primeiro momento um aumento no consumo, pela eliminação de uma resposta muito drástica que possa inibi-lo, porém o que importa é que esses usuários não mais serão tratados como criminosos. Deixamos muito claro na apresentação do anteprojeto que é preciso uma política forte do Estado em relação às drogas da mesma forma como foi feito com o cigarro. O consumo do tabaco diminuiu drasticamente nos últimos anos. O número de fumantes no Brasil caiu cerca de 36% nos últimos dez anos porque há uma campanha muito forte que alerta para os riscos desse produto. Nenhum de nós quer um filho ou parente como usuário de drogas, e por isso eles devem ser alertados dos riscos.

 

 

Leia também a exposição de motivos da comissão e a íntegra do anteprojeto.


 

Fonte: site do STJ